Se você não é da área da psicanálise, olá! Eu sou psicóloga e psicanalista em formação. Tenho uma pequena estrada percorrida desde que me formei em 2016 e propor de maneira autônoma um grupo de estudos é a primeira vez. Tenho medo e dá frio na barriga, como eu escrevi no post de divulgação do grupo. E agora, já posso dizer: aconteceu o primeiro encontro e eu fico muito feliz com isso, depois da onda de ansiedade.
Me embrenhar por um livro teórico, que trate de “temas fortemente sobredeterminados” (Iannini; Tavares, 2020, p. 10) é um desafio que toca alguns pontos. O primeiro, é sustentar fazer algo que eu realmente gosto que é ler um texto e compartilhar o que eu pensei a partir do encontro com o escrito. Segundo, é ler uma obra daquele que funda a psicanálise, mas também dialogar, questionar, me irritar e tentar articular o passado neste presente. Por fim, toca naquele lugar estranhamente familiar de insegurança e fragilidade, como se o lugar de quem conduz um grupo de estudos não devesse ser meu. Parte dessa insegurança diz também respeito ao fato de que estudar psicanálise e exercer este ofício significa não sair ilesa, se tudo der mais ou menos certo. Navegar pelo amor, sexualidade e feminilidade é tocar nesses assuntos para mim também.
Assim, acredito que escutar com o cuidado necessário minhas inseguranças, possibilite criar caminhos mais sólidos e sustentáveis teoricamente. Propor um grupo é poder lapidar um pouco mais o meu caminho de formação e espero que de quem topou participar do grupo, também. #oremos
Destaques iniciais
A abertura do livro feita pelo Gilson Iannini e Pedro Eliodoro Tavares apresenta elementos que me parecem importantes quando nos aproximamos de uma obra temática. O primeiro deles, é situar Freud como alguém que escrevia muitas cartas onde vida e constituição da psicanálise se misturavam. Salientam, por exemplo, que as correspondências completas do pai da psicanálise é estimada em “20 mil cartas, volume que ultrapassa o de sua obra destinada à publicação” (Iannini; Tavares, 2020, p. 8). Na obra que começamos a estudar, foram selecionadas as cartas que Freud e Fliess trocavam, em especial aquelas que versam sobre a bissexualidade, algo que Freud considera intrínseco a constituição de homens e mulheres. Além disso, tem a famosa carta que Freud escreve a uma mãe norte-americana preocupada com a homossexualidade do seu filho.
Gosto da proposta das cartas que Freud trocava com seus contemporâneos, não só porque elas são verdadeiramente importantes para a elaboração do que conhecemos hoje como psicanálise. Mas, principalmente, porque trocar cartas vai na contramão das trocas de informações instantâneas. O modo de se relacionar com o tempo é outro. Há tempo para elaboração, leitura, escrita e disseminação de informação. O imediatismo parece não se fazer presente. Questiono: como este modo de produzir pensamento pode contribuir ou ajudar a pensar os modos de produção que vivemos hoje? É possível ir na contramão do tempo ágil e produtivo que parece ser o imperativo no/do momento?
Ainda quanto ao tempo, penso que trata-se não só da nossa relação com ele em meio a cultura que vivemos, mas também como isso implica no nosso processo formativo, nas intervenções que realizamos e na ânsia por um suposto sucesso profissional, seja lá o que isso signifique.
Questões chaves
Embora Iannini e Tavares se recusem a dizer como cada um deve ler Freud, elencam três questões importantes e que, em maior ou menor grau, são encontradas no compilado de cartas e textos freudianos que eles organizam. Para mim, tais questões não ditam como devemos ler Freud, mas operam como questões chaves para serem companhia na leitura da obra, sendo elas:
“O que quer o feminino na mulher?” (p. 11)
“O que querem os homens?” (p. 12)
“O que querem as crianças?, ou ainda “o que querem os corpos?” (p. 12)
Se essas perguntas não causassem escândalo no século XIX, o que mais poderia causar? Ainda hoje, essas questões exigem trabalho psíquico quando se busca a elaboração delas, não acham? Comentei hoje no grupo com as mulheres que escolherem estar comigo o quanto me chama atenção a questão “O que querem os homens?”. As outras me tocam menos? Talvez. Mas, interrogar o que querem os homens me parece crucial no tempo em que vivemos.
Estaria a masculinidade, o homem e seus quereres em crise? Estando em crise, o espaço de análise pode ser um local interessante para que se pense a si mesmo. Porém, interrogo: quem está disposta(o) e disponível para suportar e sustentar a escuta, bem como o trabalho analítico, junto aos homens e suas questões? Como estar disponível e cuidar para que a escuta não seja contaminada pela compreensão da estrutura machista, misógina e patriarcal na qual estamos inseridas e inseridos? Isso é de fato possível?
Aqui cabe lembrar que a neutralidade, em situações assim, podem se mostrar uma verdadeira falácia. Quando nos damos conta, sempre a posteriori, já fomos tomadas pela fala, gesto, postura do/a paciente que profere coisas das quais, pessoalmente, discordamos. É raro, mas acontece sempre. Em situações assim podemos ter notícias do calcanhar de Aquiles de algumas análises. Quanto a elas, temos o direito e dever de escolher ou não conduzi-las. Porque sim, não precisamos conduzir o tratamento de toda e qualquer pessoa, isso é da ordem do impossível.
Penso que essa discussão que eu abro aqui é muito mais profunda. Afinal, não são poucos os estudos realizados que pensam, justamente, o que querem os homens. Intrínseco a isso, questiona-se também a masculinidade, o patriarcado, a misoginia. Outro ponto é que meu texto tem tom binário, como se só homens e mulheres cis existissem. Talvez isso seja justamente um dos pontos de crítica à psicanálise e, consequentemente, aos psicanalistas. Também temos bibliografias a rodo sobre o tema.
Por essas razões, considero que as questões chaves apresentadas por Iannini e Tavares (2020) são fundamentais para aproximar do texto freudiano, ao mesmo tempo que nos afastamos de respostas absolutas. Com sorte, poderemos elaborar algum saber sobre as questões elencadas inicialmente e, sabe-se lá quantas outras encontraremos a cada virada de página.
Situando a obra
Para quem é da área, talvez seja uma obviedade a necessidade de situar um autor em seu tempo. E, bom, o óbvio precisa ser dito, quantas vezes for necessário. Acho que Iannini e Tavares fazem isso quando escrevem:
[…] algumas pistas bastante genéricas acerca dos contextos, antecedentes e problemáticas da natureza histórica, social e subjetiva em que estes textos foram gestados - e dos quais eles se separam - podem ser uteis ao leitor de hoje. Afinal, os textos de Freud não foram escritos no vácuo. (Iannini; Tavares, 2020, p. 14).
A obviedade, então, é lembrar que os textos freudianos não foram escritos no vácuo e há pistas, mesmo que genéricas, importantes de serem levadas em consideração. Segui-las ou esquecê-las cabe a cada estudiosa/o. Assim, ainda na apresentação da obra são apontados alguns elementos do século XIX importantes para a elaboração do pensamento freudiano. Em diálogo com Michel Foucault e outros autores, Iannini e Tavares inserem a discussão do sexo como objeto de discurso, consequentemente os efeitos disso, no período oitocentista. Afinal, docilizar, administrar e patologizar corpos não é pouca coisa. Se há como questões chaves “o que querem os corpos?”, escapar deste pano de fundo cultural fragiliza a leitura do pensamento freudiano.
Soma-se a isso a “experiência amorosa” (p. 17) no século XIX, pautada no que se convencionou chamar de ideal do amor romântico. Isso se aproxima de uma experiência da subjetividade interiorizada, onde é depositado “de maneira quase exclusiva nossas expectativas de realização subjetiva e projetamos nosso horizonte de felicidade terrena” (Iannini; Tavares, 2020, p. 17). Os efeitos desse modo de se relacionar, podemos acompanhar ao longo da história, bem como na nossa contemporaneidade.
É no XIX que as lutas pela emancipação feminina ganha força e se expande. Como isso afeta a constituição da psicanálise? Quais as críticas atuais que acompanham a psicanálise desde dois séculos atrás? Me parece importante este resgate e interrogações, não só para situar Freud, mas para reconhecer sua humanidade, conflitos e contradições (Iannini; Tavares, 2020).
Assim, podemos começar a pensar sobre o feminino em Freud, ainda o situando na sua biografia e momento cultural da produção do seu pensamento. Iannini e Tavares lançam a questão de quem eram as mulheres na vida de Freud. Ao encontro desta interrogação me lembro de uma publicação da psicanalista Aline Campos sobre suas impressões de parte do livro “Dia a dia com a família Freud, escrito por Detlet Berthelsen. Em meio ao cotidiano da família Freud, podemos ter pistas da relação e função das mulheres na vida de Sigmund. Homem, branco, europeu: quantas mulheres foram necessárias para que Freud ganhasse o mundo com sua genialidade?
Situar a obra de Freud, deste modo, não me parece algo do campo: ame ou odeie. É, a meu ver, amar, odiar e sustentar o paradoxo intrínseco ao estudo e fazer psicanalítico. É uma dança entre lá e aqui. Deste modo, ouso caminhar com algumas questões: do que é feita a psicanálise no Brasil? Como este país impacta a teoria psicanalítica e, mais, o contrário também faz sentido? Sei que não são questões simples, mas, como eu disse, ouso caminhar com elas.
Daquilo que dá medo e, ainda sim, proponho
Com medo inicio o texto e, deste modo, o proponho e finalizo. Quem sabe um dia eu possa contar sobre o que significa esse medo todo em meio a minha neurose, em meio ao meu modo de existir no mundo. Por enquanto, em algumas situações, acredito que caminho com ele e apesar dele.
Propor as coisas no mundo, em espaços assim, que não se faz a menor ideia de para quem vai chegar é um tanto maluco. Mas, se eu não fizer isso ou tantas outras coisas, farei o que? É inenarrável a sensação que senti assim que desliguei a câmera do encontro hoje. É gostoso, é desafiador, me torna viva, me faz desejar viver. Escrever estas palavras aqui, também. Acredito que elas são experimentais, sabe? Distancia-se do rigor técnico/teórico, tornando-se espaço que contém a profusão de pensamentos que brotam da minha cabeça, conseguem chegar nas pontas do dedos e encontrar letras para formar um texto.
Parece que experimentando é possível degustar, tentar adivinhar o sabor e descobrir aquilo que é palatável ou não. São rabiscos tentando formar imagem, marca que não se apaga mas que pode ser transformada, caso haja necessidade.
Porque é assim, como medo que proponho e, principalmente, aposto.
Sempre que houver desejo, volto aqui para tentar compartilhar um pouco do que está sendo o grupo de estudos. E, caso você queira participar dele, me procura pelo Instagram. Assim que possível, te respondo por lá e quem sabe podemos elaborar juntos questões sobre amor, sexualidade, feminilidade e o que mais surgir!
Um abraço!
Vanessa!
Livro citado ao longo do texto e base do grupo de estudos
Link de acesso ao livro: https://grupoautentica.com.br/autentica/livros/amor-sexualidade-feminilidade/1624